LADRÃO DO PRAZER DE VIVER
Cuidado com a analgesia emocional, é o caminho mais rápido e seguro para nos livrar da dor. Mas, ela nos rouba o que temos de mais precioso: o prazer de viver.
Nossas lembranças não montam um quebra-cabeça; não há encaixes perfeitos ou figuras inteiras que se formam por partes recortadas. Nossas lembranças são o caos, a confusão estabelecida pela mente instável que é regida pela emoção. O paradoxo é mais constante em nossas vidas do que a coerência, isso é fato. O que nos traz alegria pode, ao mesmo tempo, nos infligir dor. E, a dor, pode ser a prova mais contundente de que a experiência é real e vale o mergulho. Se o mergulho vai garantir felicidade?! Que importância tem isso? Afinal, nossos momentos mais intensos de felicidade acontecem na superfície, não nas profundezas. Quem persegue a felicidade não precisa mergulhar; pode boiar eternamente.
A verdade é que nenhuma situação, fato ou conceito que não atraia a atenção de nossa mente por sua relevância, sequer chega a fazer parte do nosso acervo de memória imediata; portanto, é descartado; não será conhecimento, muito menos experiência. E nós, seres pensantes que somos, dependemos do aprendizado para tudo, desde balbuciar os primeiros sons a nos conectar com o mundo e nos relacionar afetiva, profissional e socialmente. Se refutamos o sofrimento logo de cara, como é que vamos aprender a lidar com ele?
Ocorre, estranhamente, que demonstramos uma bizarra atração por tudo o que nos causa alguma dor. Temos muito mais apego às nossas memórias dolorosas do que aos episódios de feliz normalidade. Por que será?! Outra questão não menos estranha é que o nosso cortejo à dor limita-se às fatalidades que nos atingiram no passado; estão lá, acomodadas no tempo como se fossem um filme com recursos de “pausa”, “volta” e “prossegue”. Assim, quando por alguma razão nos bate uma saudade inexplicável da dor passada, basta clicar o botão e revivê-la. Sim, somos seres muito estranhos. No momento em que temos de lidar com a situação dolorosa iminente, queremos fugir; queremos ter também o botão “passe rápido”; queremos atropelar a experiência que dói. Só para podermos guardá-la numa caixinha segura e voltarmos a cortejá-la lá do futuro quando nos der saudade. A dor presente ninguém quer. Estamos ficando viciados em analgésicos emocionais. Afinal, eles não são ilegais (bem, pelo menos a maioria não é!), cabem em todos os bolsos e independem de vínculos emocionais para serem utilizados. Esses remedinhos milagrosos nos livram da dor, como num passe de mágica. E são ecléticos! Você pode encontrá-los numa caixa de bombons de chocolate; numa garrafa de vinho; numa viagem; numa mudança de visual e até mesmo numa instituição religiosa. Os analgésicos emocionais evitam que nos encontremos frente a frente com nossas frustrações, nossos desenganos, perdas e outros monstros até piores e mais feios.
O problema é que os analgésicos emocionais fazem efeito por pouco tempo, dada à sua natureza imediata e superficial. Seres sociais que somos, carecemos da conexão com o outro para nos sentirmos confortáveis, estamos sempre buscando a felicidade fora, não nos disseram que havia um dentro, tudo que fizemos é olhando pra fora, então, não basta ser bem-sucedido, feliz, bonito, desejado. É preciso garantir que o outro tome conhecimento de tudo isso. É preciso tornar público. Sendo assim, um dos maiores fantasmas do nosso imaginário é ser excluído socialmente. Para aplacar nossa necessidade de pertencer e garantir que sempre haverá uma plateia para testemunhar nossos grandes feitos, nós estamos sempre em busca de um número maior de contatos, seguidores. Pior do que não ter plateia, só mesmo não ter o que exibir. Nesse caso de dor extrema, talvez os analgésicos emocionais já não sejam assim mais tão eficientes. Entretanto, somos também muito inventivos, encontramos sempre uma nova saída; mais rápida, mais fácil e mais eficiente.
A verdade é que sonhamos cada vez mais com respostas e soluções instantâneas para curar nossas mazelas, inclusive as da alma. E, não deixa de ser assustador pensar num “inocente analgésico para dor física” como a solução para a gritante falta de habilidade em nos relacionarmos com nossos semelhantes e nossos diferentes. Esse desejo obstinado pela felicidade instantânea e pela distância do sofrimento, ainda vai nos levar longe. O problema é que vai nos levar, também, para muito longe de nós mesmos. Corremos o risco de olharmos para alguém sobre quem não sabemos quase nada, ao nos vermos no espelho.
O caso é que cabe a nós mesmos a difícil tarefa de administrar nossa complexa existência. Vivemos em busca da racionalização, enquanto sabemos que somos uma incompreensível mistura de células, experiências, desejos, expectativas, frustrações, e mais um milhão de fatores que nos transformam o tempo todo. Somos apenas um projeto, nunca estaremos prontos. E é por isso, em respeito à nossa impermanência e incompletude que precisamos compreender que a dor é inevitável no processo de amadurecimento. Sem ela, corremos o risco de nunca sermos capazes de sentir o real prazer que nos é garantido em nossa rápida estadia por aqui: viver!
Nenhum comentário:
Postar um comentário