MORRER É UMA TAREFA QUE SE CONSTRÓI VIVENDO
Temos que olhar a morte com seriedade, mas vivemos como se ela não existisse, colocamos a morte num patamar inatingível, não falamos sobre isso em casa, na escola, nem na nossa formação, mesmo que ela seja na área médica ou de saúde e é isso que dá nesse sofrimento todo no momento em que damos de cara com ela, seja em relação a morte dos outros ou a nossa própria. Aliás, pode ser que o que te intriga mais não seja a morte dos outros, mas a sua própria.
Você já deve ter ouvido falar que o medo da morte é normal, é o simples medo do desconhecido, mas talvez isso não tenha ajudado em nada pra diminuir a sua ansiedade e o seu medo de morrer. Pois bem, vamos por parte, você pode não gostar de pensar nem de falar sobre esse assunto, mas isso não te liberta da possibilidade inevitável de morrer. Podemos não falar nada, tudo bem, mas independente de fingir que isso não é com a gente, vamos morrer do mesmo jeito.
Bom, se é fato que vamos morrer, creio que podemos aplacar nossa angústia pensando de que forma queremos morrer, no sentido de, qual a história que eu deixo? qual a intensidade do amor que eu desenvolvi e promovi a minha volta para que eu possa deixar uma marca, um legado nesse mundo. A gente não deve se preocupar em deixar uma herança para os nossos, mas um legado. Isso ajuda muito a pensar na nossa própria morte com mais serenidade.
Assim, morrer é uma tarefa que se constrói vivendo, cada dia vivido precisa ser experimentado com a possibilidade de ter sido o último, sem que haja necessidade de um seguinte para corrigir alguma coisa. Quando isso ocorre, a morte ganha uma outra conotação: deixa de ser uma tragédia inevitável que nos toma de surpresa, e passa a ser olhada todos os dias porque nos lembra a fragilidade da vida e da importância de sua experiência radical, tanto no aspecto pessoal, como no convívio com os outros.
E a nossa espiritualidade? Esse é outro assunto que merece reflexão aqui. A espiritualidade é uma coisa que nasce, brota, cresce e emana do próprio coração da criatura. As religiões todas têm em suma um propósito de alívio das demandas do sofrimento das pessoas no dia a dia. Mas se você procurou a religião com propósito de benefício, de privilégio, de se diferenciar das outras pessoas como parte dos "escolhidos", se considerando mais valioso ou mais evoluído ou mais importante perante Deus do que as outras, é roubada, porque na hora de morrer essas letras miúdas do contrato que você pensa que assinou com Deus não rola. Entendeu? Não rola! Porque não é legítimo. Você pensa que sabe o que Deus pensa, mas de verdade o mistério existe, não há resposta, nunca teve resposta, nunca haverá resposta.
A demonstração de fé mais poderosa que podemos dar é entender que nem você nem ninguém escolhe passar pelo caminho da dor, mas se Deus acredita que a gente é capaz de passar, que nós vamos dar conta, nós não vamos decepcioná-lo e ter certeza que nós vamos receber Dele tudo que a gente precisar pra passar por isso com menor sofrimento possível. Isso é fé! Por exemplo, fé não é você ter fé que você vai ser curado, isso é expectativa, fé é acreditar que você tá nesse caminho que tá debaixo do teu pé e é esse que você vai trilhar, e é esse que você vai dar conta. Parece que as pessoas que trazem essa demanda de privilégio com Deus, as que se consideram detentora de todo o conhecimento no pós morte, são propícias a experimentarem os maiores sofrimento durante a morte, por não conseguirem, muitas vezes, conectar aquelas coisinhas que ela aprendeu nas aulas, lendo o Livro de trás pra frente, de frente pra trás, e aí ficam duvidando daquilo que aprenderam, e a dúvida nessa hora leva a uma crise espiritual muito grande. Essa dúvida surge quando a fé é apenas intelectual, foi aprendida mecanicamente, foi uma busca externa, não nasceu, brotou e cresceu do coração da pessoa, não era legítima.
Dentro de todas as religiões, penso que a melhor forma de conduzir a sua relação com Deus, sua relação com o sagrado, é com base no amor e na verdade (como em tudo na vida), se tiver culpa, medo, traição, privilégio se você faz o bem pra se dar bem a chance de dar problema no final é muito grande. Melhor desenvolver esse eixo em outra perspectiva, no amor e na verdade, porque aí não tem chance de dar errado.
Escrevo essas coisas numa tentativa sincera de colaborar com essa progressiva intimidade que devemos ter com a experiência do morrer que nos ajuda não apenas a reorientar nossas prioridades na vida e a nos prepararmos para morrer, mas também a apoiar pessoas queridas que se aproximam da morte ou passam pelo luto.