A DUALIDADE DOS PERSONAGENS NOSSO DE CADA DIA
Nossa lógica narrativa impede que a gente possa se ver como vilão, já que todo mundo tem a sua lógica pessoal e intransferível.
Nossas histórias pessoais são vividas sempre na primeira pessoa, somos os protagonistas, os personagens principais, e por isso, em teoria, sempre os mocinhos.
Familiares e amigos são coadjuvantes, um marido atencioso é interesse romântico, o colega de trabalho que discute contigo é antagonista, seu avô quando você visita é aquela participação especial do ator veterano que claramente não tá mais se importando tanto com a trama, tá ali meio que no piloto automático, pois ele já disse suas falas e vai lá para os bastidores beber um café e ler um livro.
E uma coisa bem específica da lógica do mocinho é que ele não erra. Quer dizer, ele até erra, mas os erros são sempre motivados por uma razão maior, sempre levam a um triunfo posterior.
Os erros do mocinho são sempre justificados de alguma maneira e servem pra ele se reafirmar enquanto protagonista que merece que tudo dê certo. Só quem erra por egoísmo, cobiça, falta de empatia, imbecilidade ou pura incapacidade de ver algo de errado no que está fazendo é ele: o vilão.
Esse é o ponto em que, é claro, as coisas complicam. Isso porque todas as pessoas erram, todas as pessoas vacilam, todas as pessoas dão aquela bola fora, aquela pisada na linha, aquela atitude que você toma mas se precisasse justificar em vinte linhas pra uma comissão avaliadora você apenas ia pedir desculpas e dar uma cabeçada na parede com força moderada. Claro, alguns de nós erram de maneira leve e até parcimoniosa, enquanto outros são vacilões contumazes e conseguem tomar uma decisão moralmente questionável até na hora de escolher o tamanho do pão no Subway, mas todo mundo, no final, está sempre passível de vacilar.
Mas a ideia de que somos mocinhos causa, quando a gente erra feio, quando a gente vacila com outra pessoa, quando a gente magoa alguém, quando a gente se comporta de alguma maneira indesculpável, seja pelo egoísmo, pela desonestidade, pela falta de generosidade ou por pura babaquice. Porque sendo mocinhos podemos errar, mas esse erro precisa ter algum motivo, precisa ser fruto de algum contexto, precisa ser justificado dentro de uma trama que mostra que somos pessoas boas, que o outro mereceu, que temos uma gama de atenuantes e explicações e que tudo vai ficar bem claro no final do filme.
Os outros personagens ajudam nisso, claro. Pra sua mãe você sempre vai estar certo, aquele filhote de coelhinho realmente devia estar te ameaçando, você agiu em legítima defesa. Para seus amigos o seu lado sempre vai parecer justificado, não dava pra saber que os itens da loja eram pra venda e alguém ia implicar com você por sair com a tevê de tela plana debaixo da camisa. Para os vizinhos esse tipo de coisa não importa desde que você continue sendo legal, sem palhaçadinha de reclamar porque o som da festa ficou alto até altas horas num dia de semana. Tudo tá justificado, tudo tem uma explicação, tudo convenientemente bate com a teoria narrativa do mocinho.
Mas no fundo, bem no fundo, a gente sabe que não. Que tem coisas que a gente fez sem justificativa, que tem coisas que a gente fez por ser idiota, que tem muitas coisas que a gente fez de maneira egoísta e desonesta, e que “não saber o que estava fazendo” ou “não ter feito de propósito” não são atenuantes o bastante quando se trata de humilhar outra pessoa ou ser sacana em momentos que você jamais teria o direito.
Tem situações em que, por mais que você queira se acreditar como mocinho, a verdade é que você foi o vilão da história e tentar disfarçar isso, tentar justificar isso, não aceitar as implicações disso, é não apenas uma falta de respeito com as pessoas que você afetou como uma grande oportunidade de aprendizado que você está jogando fora – a única rota de mocinho que poderia te restar.
Porque dificilmente a gente consegue ser o príncipe ou a princesa encantada, quase nunca a gente consegue ser o super-herói que salva o mundo, tem momentos em que nem o anti-herói pouco convencional, mas com um vago resquício de princípios, a gente consegue ser. Mas quando no final você nota que o tempo todo o vilão da história era você mesmo, o mínimo de responsabilidade que te cabe é evitar que esse filme complicado vá ter algum dia uma sequência.
É bem verdade que nós sempre seremos vilões pra alguém.
Se você vai numa entrevista de emprego e leva a única vaga, para os seus concorrentes, você pode ser encarado como um vilão. Se um namorado tem ciúmes de você porque você é amigo da namorada dele, você vai ser um vilão no mundo dele. Se tu pega o único lugar vago do metrô pra sentar antes da outra pessoa conseguir, tu vai ser o vilão do momento pra ela também.
O que a gente tira disso? Que as vezes nem é preciso fazer algo ruim ou prejudicial pra ser o antagonista de uma história, seja ela curta ou não.
Além disso, já notaram que os mocinhos das histórias são sempre sem sal e os vilões são sempre legais de acompanhar ? É porque o arquétipo do bondoso muitas vezes está atrelado á passividade, á ingenuidade, á pureza, e isso se reflete na forma como esses personagens são reproduzidos na ficção e na realidade - enquanto que o arquétipo do vilão é o do cara que faz o que deseja, que é audaz, que mostra quem ele é, que põe seus objetivos acima dos outros, que tem personalidade forte, ainda que tudo isso seja usado para fins discutíveis em muitas ocasiões.
E no final, a gente gosta de gente assim, - "habitada", conforme dizia Martha Medeiros, gente que é "possuída" - gente que passa e deixa uma impressão forte, que não é morna, que se decide e toma a frente.
Talvez, no fundo mesmo, sejamos todos anti-heróis. Aqueles que agem por princípios, que não visam livremente o prejuízo do próximo, que possuem certo grau de empatia, mas que ao mesmo tempo não se esforçam em ser santos, em ser essa versão pasteurizada sem defeitos nem erros de caráter dos heróis bonzinhos. Somos o que somos. Essa versão inacabada que não para de evoluir em meio á todo tipo de cagada e acerto.
A gente passa a vida inteira tentando manter a pose de herói. Só que na real #SomosTodosVilões e fazemos uma porção de coisas baseadas em nosso egoísmo. As vezes nossa defesa é atacar o outro. Acho que aí não tem herói ou vilão, é que as vezes existem coisas que não vão se enquadrar no esteriótipo.
É ótimo olhar pra dentro de si e identificar o que errou ou o que pode fazer para melhorar. A vida se trata justamente disso, não é verdade? Todos os dias vivemos N situações distintas e vamos aprendendo com elas. Não somos perfeitos, somos heróis falhos vendo e vivendo situações onde o "bem" não consegue vencer sempre.
Melhor não sermos o herói que idealizamos, melhor sermos o herói que precisamos.