PRA CAIR NA REAL
Não sei se vocês já notaram que somos sempre pegos de surpresa pelo sofrimento, pois nunca nos demos conta que ele sempre esteve ali, à espreita, para se manifestar a qualquer momento. Nesse momento cai a ficha de que não estamos no controle das situações, de que não controlamos nada.
O fato é que precisamos cair na real e viver com a noção do sofrimento viva, como pano de fundo de nossos olhos. Precisamos nos dar conta que nosso bem-estar é frágil: não sabemos quando as coisas vão girar e quando entraremos num ciclo emocional ou físico bem difícil. Se a gente prestar atenção vamos ver que isso acontece de tempos em tempos com todos ao nosso redor, nós não ficaremos de fora.
Estamos tão focados em aumentar nosso bem-estar, que não nos damos conta que a vida está e sempre esteve permeada por muita dificuldade, as coisas estão sempre saindo dos trilhos na vida de alguém e a nossa vida será inevitavelmente a próxima a descarrilhar, em algum momento. Depois as coisas se endireitam por um tempo, mas depois entortam de novo. Até o descarrilamento final da morte, que nunca é demais lembrar, dado o quanto ignoramos esse fato, que ocorrerá inevitavelmente com cada um de nós.
Não percebemos que a nossa sanidade e integridade física estão por um triz, pois há uma grande fragilidade e um enorme potencial para o sofrimento pelo simples fato de termos uma mente e um corpo.
Se afrouxarmos um pouco o foco na busca unicamente da nossa felicidade pessoal e olharmos ao redor para ver o que está acontecendo com as pessoas, vamos descobrir coisas interessantes sobre o mundo e sobre nós mesmos.
Assassinatos, roubos, acidentes de carro, de avião, doenças físicas e mentais, violência. Ao nos depararmos com o sofrimento que está por todos os lados, podemos cair na real e nos dar conta da fragilidade na qual todos nós estamos imersos. Estamos todos a mercê da mente do piloto do nosso avião. Estamos todos dependentes da noite bem dormida do motorista do nosso ônibus. Nossa vida depende da atenção dos motoristas quando atravessamos a rua. Num piscar de olhos, tudo pode girar e muito sofrimento se instaurar, da noite para o dia.
Sofremos ao nos depararmos com a imprevisibilidade e fragilidade da vida, tentamos encontrar culpados ou justificativas para entender o que está acontecendo. Mas, ao olharmos com cuidado, vemos que todos estão passando por isso. Não é nada pessoal do universo conosco.
O objetivo de se aproximar mais do sofrimento ao redor não é gerar pessimismo, nem uma noção de que o mundo é um lugar horrível, e nem que as pessoas são más e por isso "pare o mundo que eu quero descer". O ponto é que, a medida que ignoramos a existência de algo, quando aquilo se apresenta, nós estranhamos, somos pegos de surpresa e não sabemos o que fazer. Desperdiçamos o potencial pedagógico do sofrimento que permeia nossas vidas constantemente.
Olhar o sofrimento pode parecer algo pouco animador de se fazer, mas os efeitos dessa prática são de uma vigorosa força! De fato, pode brotar uma depressãozinha ao percebermos o quanto o sofrimento é generalizado e assola, muitas vezes desnecessariamente, a vida das pessoas. Por outro lado, essa tristeza é acompanhada de uma coisa que nos comove, de um sentimento que nos inspira a fazer o que estiver ao nosso alcance para amenizar o sofrimento pelo qual as pessoas passam.
Se vivermos com uma consciência mais clara do sofrimento e da impermanência, veremos as coisas de uma forma mais terrena, menos fantasiosa e infantil. Ao vivermos mais conscientes das mazelas do mundo, uma série de efeitos colaterais emergem naturalmente dessa visão: passamos a cuidar mais das nossas ações para não gerar impacto negativo sobre as pessoas, realinhamos nossas prioridades para não perder tempo e aproveitar que não estamos sofrendo tanto agora, cuidamos melhor das pessoas e das relações, pois sabemos que elas são frágeis e passageiras.
Quando paramos de ignorar o sofrimento que nos cerca e nos espera, ganhamos um eixo, reorganizamos as prioridades da vida, não admitimos mais perder tempo com coisas menores. Nos tornamos sensíveis e identificados com relação ao sofrimento dos outros.
Ao observar episódios breves de sofrimento com os quais nos deparamos no dia a dia na rua, no supermercado, nos jornais, na família, no bar, veremos que o sofrimento está muito mais presente do que imáginávamos e, ao invés de ignorarmos, vamos olhar bem dentro do olho do furacão do sofrimento, vamos perceber que aquilo poderia ter acontecido conosco ou com pessoas próximas.
Diante de algum desaforo, vamos respirar fundo e considerar que a negatividade do outro, na verdade, é um pedido de socorro: ele quer ser feliz e não sabe como.
Não responderemos internamente com mais negatividade, por reconhecermos que agir negativamente, causando sofrimento aos outros, é a mesma coisa que estar em sofrimento, não tem diferença.
Vamos fortalecer conscientemente nossa aspiração de fazer o nosso melhor para não trazer mais perturbação para o mundo e aumentar nosso impacto positivo.