sábado, 27 de junho de 2015

PERVERSIDADE HUMANA

OS LIMITES ENTRE O "EU" E O "OUTRO"


No princípio era a regra.
Grandes nomes das ciências humanas, Rousseau e Freud nos dizem algo muito semelhante: as leis fundam a nossa humanidade.
Sem considerar os meandros contemporâneos da forma assumida pela lei em seus artigos, parágrafos e incisos, podemos pensar na Lei fundadora da sociedade como algo mais amplo, universal a todas as culturas humanas: as regras sociais dizem sobre os limites entre o “eu” e o “outro”.
Deixa eu tentar explicar.
Para que o “eu” possa existir, é preciso que ele abdique da realização total de seus desejos e que reconheça que há algo além de si próprio e, ao mesmo tempo, semelhante: o “outro”. Se todos podem matar, roubar, violentar uns aos outros, a existência de cada ser fica prejudicada.
Os limites de minhas ações, portanto, são estabelecidos pelas regras que fundam a vida em comunidade. São dessas leis que estamos falando e elas assumem diferentes formas nas diferentes sociedades e em distintos períodos históricos, mas sempre existentes.
A regra é interiorizada por todos nós, de diferentes maneiras. Para alguns, a simples menção à fuga da regra soa perigosa. Para outros, ela culmina na culpa. Em muitos casos, simplesmente se cumpre a lei porque a recompensa do cumprimento é a promessa de segurança e felicidade, como garantem o Estado e as Religiões.
O perverso Freudiano é, resumidamente, aquele que reconhece a existência da lei, mas não a respeita. A perversão não está simplesmente no ato de negar ou contestar a lei. Está no ato de não respeitá-la enquanto indivíduo, negando os limites da realização de seus próprios desejos.
O perverso não é uma pessoa com crise existencial, com culpa ou que respeita a lei para ter em troca segurança e felicidade. Tão pouco ele implode os contratos sociais para impor novos.
Ele não é contracultura.
E isso não faz do perverso alguém mais próximo de nossa natureza animal, por implodir a regra social. Ele a conhece e, inclusive, domina seus códigos, mas fixa seus desejos em algo que não depende da regra e do contrato social para se realizar. Pode se fixar no prazer pela violência, prazer pelo sofrimento, pelo espetáculo da submissão e da dominação em si próprios.
Em muitos pontos, acho a sociedade brasileira bastante perversa. Sobrevivemos -- enquanto sociedade -- vivendo ainda em cima de feridas históricas, como a escravidão, a ditadura militar ou o massacre indígena. Mas, mais do que isso, nossa perversão se realiza em ações cotidianas bastante simples.
Todos nós conhecemos regras básicas: respeitar as regras de trânsito ou deixar as pessoas saírem do transporte público antes de entrarmos. No entanto, a regra é para todos, não para o “eu”.
O público também é de todos, não é “meu”. A regra é sempre para o “outro” e o “eu” é a exceção, ou seja, não é uma questão de se concordar ou não com esse tipo de vida em sociedade ou de se propor outra. É a conduta antissocial.
A implosão da regra tem seus resultados visíveis: tumulto no trânsito e no transporte público.
E onde não há regra interiorizada, há insegurança. E há também violência.
Nesse quesito, nossa perversão cotidiana se apresenta de maneira espetacular. Dentre muitos exemplos, esta semana tivemos o caso do cantor sertanejo Cristiano Araújo, que morreu em um acidente de carro. Os jornais noticiaram que a Polícia Civil indiciou duas pessoas pelo vazamento de fotos e vídeos em redes sociais do momento em que o corpo do cantor era preparado para o sepultamento.  Vídeo e fotos da preparação para enterro foram divulgados em redes sociais. Essa questão do gosto pelo mórbido, por coisas grotescas, violentas,  não é novidade, num caráter de perversidade é um espetáculo de televisão, como se fosse cinema.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de Goiás, “o resultado das investigações será encaminhado para o Poder Judiciário". As pessoas que participaram do ato criminoso podem ser condenadas à pena de 1 a 3 anos por vilipêndio a cadáver.
A lei não garante que eu respeite nem que  eu seja repeitado, porque no fundo, eu só tenho respeito se eu realmente encaro o outro como um igual e respeito os limites de minha e de sua existência.
Fico pensando, portanto, se a perversão cotidiana não seria estratégia para sobrevivência frente a essa sociedade violenta por si própria. De fato, e aqui apresento meu maior medo de todos, infelizmente nossa estratégia alimenta todos os dias seus próprios monstros.

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