VIVA O DESAPEGO
Quando dividimos nossas vidas em diferentes áreas, costumamos obter um modelo família, carreira, namoro e/ou casamento, amizade. Se olhamos para o modo como nos relacionamos em cada uma destas áreas, podemos ver que somos um com a família e outro com a carreira; um com a namorada, outro com os amigos. É possível ter a impressão que em nenhuma destas áreas somos totalmente nós mesmos. Talvez se alguém juntar tudo, pode até dizer que somos X + Y + Z. Mas isso não é totalmente verdade.
Adicionamos, por exemplo, uma academia como uma nova área. Então já é mais um diferente. Se continuarmos a adicionar mais áreas, descobriremos que somos infinitas versões de nós mesmos, que construímos um avatar em cada lugar que passamos. Somos invenções. Somos descaradamente construídos por nós mesmos. Mas, até então, não há um grande problema nisso. Todas as pessoas são assim. Criamos o "eu" que achamos mais adequado ao ambiente. Nem por isso deixamos de ser quem somos – a criação é expressão de seu criador. O problema ocorre quando somos demitidos, a namorada ou casamento termina, os amigos tomam rumo deles. De repente, a peça mudou de nome e não sabemos mais com qual personagem atuar. Nessas horas, podemos ouvir uma sábia voz:
"Ô imbecil! Você já viu algum ator chorar porque a peça acabou? Pô!"
É uma questão de desapego encarar tudo como uma coisa transitória e fadado ao fim, mas como tudo é muito complicado para o ser humano, talvez não tenhamos sido "planejados" para esse exercício.
Diferente do ator de teatro que deixa o personagem quando vai pra casa e não se confunde nunca com ele, aliás deseja se livrar dele, nossos personagens da vida real são partículas de nos mesmos, o construímos dia a dia, ano após ano, como o ideal de boa mãe e esposa, bom profissional, bom vizinho, são personagens que compõe nossas personalidades por isso quando um é demitido da sua função nos desesperamos, uma parte de você foi arrancada, algo que você esta totalmente no controle e que levou muito tempo pra ser feito. O cara sabe que fazer um "laboratório" para outra peça vai ser muito trabalhoso, tememos esse desafio.
Acho até mesmo salutar essa luta para reempregar o velho ator à antiga peça, sinal de que damos valor ao que construímos.
Mas ora, se sabemos que somos apenas criações de nós mesmos, o personagem morreu, mas o ator segue intacto! Não há problema algum em usarmos nossos personagens, já que sem eles não nos relacionamos com o mundo. Quando a peça "Vamos nos casar!" termina, podemos sair calmamente do teatro em meio a vaias e aplausos. Estamos livres deste papel.
O momento em que mais sofremos e queremos resolver o "problema" é o momento em que temos mais liberdade. É o momento onde não há personagens, não há trabalho, e podemos ser quem quisermos. Como diria o grande mestre Chögyam Trungpa:
"Qualquer coisa que é criada deve, cedo ou tarde, morrer."
E quando personagens morrem, não precisamos mais nos esforçar para sustentar seus papéis.
A habilidade de deixar as coisas não resolvidas cabe muito bem aqui. Temos um impulso muito forte de ocupar este espaço com um novo papel, de encontrar um novo teatro para trabalhar. Seguindo essa urgência, não temos tempo de contemplar o ator que está por trás de tudo. Se aprendermos a repousar nesse espaço fora dos palcos, podemos respirar um pouco e clarear a mente, nos liberar totalmente do personagem que morreu, e só então aceitar um novo papel, conscientes do que estamos fazendo.
Ou vai me dizer que você quer arrumar um emprego igual o que você estava antes? Que você quer encontrar um namorado ou marido que te lembre o ex?
Então chega o momento. Decidimos que, depois de um tempo de descanso, é hora de voltar aos palcos. Arrumamos um novo emprego, ou um romance brilha aos nossos olhos, novos amigos surgem. Neste momento, criamos um novo personagem. Voltamos a atuar dentro dos palcos de nossas vidas. Dessa vez com o olhos mais abertos, sabendo que são apenas papéis que desempenhamos.
Com um pé dentro e um pé fora, as coisas inexplicavelmente ganham um brilho a mais. Aquele emprego não é o nosso emprego, é o emprego que poderia ser de qualquer um, mas nós estamos atuando ali agora. Ganhamos todo o cenário do emprego, horários, compromissos, salários, mas perdemos o peso de ter que sustentar isso, porque se cair, sabemos que o ator ainda estará lá, pronto para receber as vaias e aplausos de mais um papel bem atuado.
Começamos um novo romance com aquele cara que por hora é nosso príncipe . Mas ele não é nosso príncipe, ele também é um ator. Somos dois artistas atuando, nos inventando e reinventando. Ele poderia ser de qualquer uma, você poderia ser de qualquer outro, mas a peça está rolando e calhou de serem vocês. Este é o seu momento e a atuação abre espaço para a improvisação, a criatividade, a leveza e a contradição.
E assim seguimos a vida, nos criando e destruindo, desempenhando bravamente nossos papéis. Podemos treinar abrir nossos olhos se flagrarmos os próprios papéis que estamos usando agora, neste exato momento de nossa vida. Então que tal começarmos? É um bom exercício!
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