O AUTO-BULLYNG
A ideia de culpa está muito associado a religião, mas acho até meio ingênuo pensar que a religião criou um sentimento. Ela pode evidenciar, reforçar e se aproveitar disso, mas criar não cria. O que a religião cria – assim como a filosofia, a ciência e qualquer outra visão normatizante – é a visão de mundo que estabelece qual é a risca que separa o bem do mal, o certo do errado, o justo do injusto.
O que consideramos como digno de culpa ou condenação moral nada mais é do que a transgressão de um conjunto de regras construídas socialmente para regular um determinado grupo de pessoa numa determinada época histórica. Ela não é imutável por natureza, mas sempre mutante já que a própria estrutura da sociedade se reformula criativamente e estimula novos tipos de comportamentos, regras e transgressões. Por exemplo, numa época a pena de morte pode ser legítima e em outra passa a ser questionada até o ponto de ser abolida.
A culpa que muitos sentem costuma ser reflexo da imagem de transgressão que as pessoas significativas que influenciaram sua formação tinham a respeito do conjunto de regras que absorveram através da sua cultura. Seu pai aprendeu com o pai dele, reformulou ao seu modo e repassou a você que vai absorver ao seu modo e repassar aos demais e assim por diante. É um grande telefone sem fio de gente "ditando regras" para o bem viver.
Nesse aspecto, a culpa que você sente por tudo pode ser só uma transgressão bem pessoal de uma regra inventada pela sua família e que nada tem de transcendente e universal. Talvez seja um punhado de achismos baseado em experiências amarguradas de pessoas frustradas que resolveram ter filhos e passar sua moral sobre o que é "bom" na vida.
Transgredir esse tipo de regra, nascida do rancor e de uma visão mesquinha da vida, é até um favor que nos fazemos, afinal o custo de perpetuar a ignorância e a infantilidade é bem alto.
A culpa crônica é como um auto-bullyng, dá pra imaginar que a pessoa culpada tem um eu avaliador parecido com uma tia velha, chata e implacável que faz bullying com o seu eu. Se o seu eu sai um pouco do cercadinho que a tia velha determinou como O Certo, logo recebe uma chicotada desproporcionalmente agressiva. Se a pessoa foi educada por pessoas muito intransigentes pode ser que ela fique se debatendo com culpas infinitas, ainda que despropositadas e não-construtivas. Essa culpa não produz melhora ou amadurecimento, só peso desnecessário e sujeira psicológica.
Daí, a pessoa faz um monte de coisas para tentar se corrigir de um erro que não foi um erro e piora ainda mais sua situação. É ou não é um auto-bullying?
Precisamos ficar atentos nessa areia movediça de regras incoerentes com retratações sem sentido e múltiplas automutilações psicológicas.
Melhor aceitar a complexidade, assimilar a diversidade, ultrapassar aquilo que só serve pra amarrar a sua vida e viver na plenitude de liberdade da própria consciência, o tão necessário livre arbítrio.
Vamos produzir, avançar, aprender, acreditar no que ama, tocar pra frente, administrando o auto engano que por ventura esteja encrustado em nossa forma de pensar.
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