terça-feira, 13 de outubro de 2015

NOSSA VIDA É ENCENAÇÃO

SOMOS PERSONAGENS DE NÓS MESMOS


Há duas maneiras de nos relacionarmos conosco: acreditar no que somos ou ver nossas faces como personagens de nós mesmos.
Somos reféns das visões que criamos para nós mesmos. Ao conhecer alguém novo, por exemplo a atitude mais comum é nos precipitarmos em nos apresentar de modo fiel ao que temos sido ou tentado fingir até então.
Talvez o estranho que acabamos de conhecer nos daria espaço para ser outra coisa, ou nós mesmos teríamos sua oportunidade de ser completamente novo. Talvez o tímido pudesse ser extrovertido pela primeira vez, o autoritário pudesse ceder e o canalha se apaixonar de modo derradeiro. Mas o tímido logo reafirma sua característica pelo corpo e às vezes pela própria fala (“Eu? Não, eu sou tímido”), o autoritário preocupa-se em aprender modos de controle que funcionem com a nova pessoa, e o canalha reitera seu fechamento à verdadeira canalhice da vida: amar.
Quando participamos de diversos mundos – cada um com sua linguagem, modo de ação, ambiente, desafio e objetivo específicos – e lidamos com uma ampla gama de histórias, fica mais fácil perceber como não somos nada do que parecemos ser. Quando vou praticar minhas atividades físicas sou focada, coloco um fone e pouco falo, pouco extrovertida. Com os afazeres domésticos sou desorganizada, foco zero. Quando estou entre amigos e familiares falo muito, de ficar rouca, sou excessivamente extrovertida.  Afinal, quem sou eu?
Por trás de cada identidade, há uma tendência. Por trás do menino que chora, há uma base de carência. Por trás do nariz empinado, uma base de orgulho. O que, então, estaria por baixo disso? Embora essa pergunta possa parecer filosófica, ela é o cerne de nossa insatisfação, de nossa instabilidade de energia e ânimo, pois é justamente por transitar de uma identidade a outra que seguimos batendo cabeça. Não é o transitar que nos aflige, é nossa crença em cada personagem (“eu sou isso”) que nos coloca em crise cada vez que um deles se dá mal ou morre. 
Ainda que nos esforcemos para perceber o processo enquanto ele ocorre (jogar luz, manter consciência), isso não tem força alguma contra a energia do aprisionamento. No cinema, sabemos que é só um filme, mas nosso corpo não: as glândulas se ativam todas, nos contorcemos, choramos, gargalhamos, nos movemos. 
Quando nos relacionamos, vemos que os outros encenam mentiras para nós na tentativa de, eles mesmos, se convencerem de suas próprias ilusões. Somos parte de seu processo de auto-engano, como se eles pensassem: “Se ele acreditar que eu sou assim, então eu acreditarei também”. Em geral, acreditamos nas besteiras que o outro conta a si mesmo ou buscamos um outro eu profundo e verdadeiro (“Você não é assim, eu conheço você”). Em ambos os casos, damos solidez ao que o outro manifesta, de modo aparente ou oculto, consciente ou inconsciente.
Raramente, contudo, nos lembramos de que se nós mesmos somos tímidos em um grupo e extrovertidos em outro ambiente, então não somos nem tímidos nem extrovertidos. E o outro também… Ele não é nem o que manifesta e nem o que esconde, nada do que podemos apontar e definir. Ele é a liberdade de ser. Pura abertura, mobilidade e espacialidade. Sem tendências, sem bases. Quando nos demoramos em uma pessoa com esse olhar livre, é natural  que ela se solte como nunca antes. 
Quando sentimos que somos alguém, quando acreditamos em alguma base, temos medo de avançar, pois é nossa vida que está jogo. Vivemos com o pé atrás, sem intensidade. Se o personagem despencar, pensamos que caíremos juntos. Se somos excluídos dos grupos nos quais somos alguém (família, trabalho, amigos), o que sobra? Tudo o que menos desejamos é desabar.
Sendo mobilidade, ora somos o namorado que sofre o fim do namoro, ora somos o pai recém-nascido que pula no hospital. Ainda assim, não perdemos contato com nossa natureza que não é nem pai nem namorado, nem filha nem viúva. É essa confiança além de nós mesmos que nos tira o medo de incorporar com paixão cada personagem e mergulhar de cabeça em cada história.
Quando já sabemos, logo de saída, que não somos ninguém, quando não acreditamos, não há medo de desabar, não há nada em jogo, não há seriedade alguma que possa ser abalada. Podemos assumir quantos personagens forem necessários para adentrar os mundos ao nosso redor. Podemos ser tolos, ridículos, passar vergonha, humilhação. Sem acreditar em nossas histórias, não vamos ignorar o que o outro encena para nós. Não! Nós vamos olhar tudo como encenação. Não vamos ignorar o que o outro nos oferece, apenas não vamos acreditar, assim como não acreditamos que filmes sejam verdadeiros e não deixamos de chorar, assim como a percepção da artificialidade dos castelos de areia não nos impede de brincar.
No outro, não há identidade oculta, há apenas a encenação e a liberdade que ele já está desfrutando para se auto-enganar. Então, nós vamos sorrir para o processo que já está ocorrendo. Sem alterar nada, vamos nos relacionar com ambos: personagem e liberdade, jogo e abertura.
Já podemos parar de ensaiar, afinal nunca estivemos fora do palco. Livres de nós mesmos, vamos enfim viver.


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