SEM NENHUM PÉ NO CHÃO
Como já escrevi em um outro texto deste blog, é impressionante como colocamos energia e vinculamos nossa felicidade a elementos impermanentes (uma pessoa, uma instituição, uma casa, uma cidade, nosso corpo): quando eles flutuam, oscilamos; quando desabam, morremos junto. Buscamos existir e nos tornarmos reais por meio do dinheiro, da fama, do amor romântico e da tecnologia. Procuramos por alguma base para fixar os pés e ali nos sentimos protegidos. O pessoal do trabalho nos concede qualidades, nosso parceiro nos elogia, somos irresistíveis pelo face, compramos roupas que nos deixam vivos diante da sociedade. Por termos medo de viver sem bases, nos agarramos a bases frágeis, como se elas fossem seguras e eternas.
Quando entramos em crise, somos como o Coiote que, ao fugir do Papa-Léguas, se dá conta que passou do limite do penhasco e ficou alguns segundos correndo sem chão. Temos a sensação de base até que olhamos para o chão e tomamos um susto: não há nada abaixo de nós! Assim que percebemos isso, começamos a cair e buscamos desesperadamente por outra base. Com a nova sensação de pés no chão (depois de uma promoção no trabalho ou uma bela noitada com a nova paixão), paramos de olhar para baixo. De fato, a sensação de segurança vem dessa ilusão, cegueira voluntária. A base dura, portanto, até o momento em que algo nos levanta as pálpebras, até que olhamos novamente para baixo e vemos que estamos há tempos andando sem chão.
Ora, nunca houve penhasco algum! Em nenhum momento de nossas vidas realmente estivemos em um chão seguro. A crise só acontece porque temos a sensação de perder algo que nunca tivemos. Desde nosso nascimento, estamos andando céu afora, sem porto seguro, sem referencial último, sem certezas absolutas, sem colo incondicional. Não precisamos nos desesperar quando a vida puxa nosso tapete e perdemos o chão: ele nunca existiu. (A mesma idéia se apresenta na instrução “Viva como se estivesse morto”: sem medo de perder a vida, pois não mais a tenho, posso finalmente viver).
Curiosamente, ao viver sem bases, ganhamos potência e intensidade. Enquanto buscávamos segurança, deixávamos um pé atrás diante dos mergulhos inevitáveis da vida – no outro, no mundo e no amor. Agora, na espacialidade sem sustentação, nos jogamos inteiros, com força total. Já que nosso medo é virar nada, cessar de existir, não ser, corremos em sua direção e nos tornamos um imenso nada, para que tudo seja em nós. Tal processo levou Nietzsche a dizer:
“Vamos matar o espírito da gravidade!Eu aprendi a andar. Desde então, passei por mim a correr.Eu aprendi a voar. Desde então, não quero que me empurrem para mudar de lugar.Agora sou leve, agora vôo, agora vejo por baixo de mim mesmo,agora um Deus dança em mim!”
Se desejamos percorrer o amor, desfruta-lo por dentro e ser levado por ele, não podemos fixar os pés, não podemos tocar o chão. É na suspensão, que nos livramos do medo. No chão, toda pisada esconde medo e esperança. No chão, os olhos se fecham, os pés hesitam: o calcanhar verifica a solidez, as pontas dos dedos conferem se não há um buraco logo a frente. Só andamos se o chão diz OK. Só amamos se confirmamos cada sentimento no outro. No chão, mal pisamos. Andamos torto.
Suspensos, olhamos para as nuvens abaixo. Abrimos os olhos e pisamos fundo. Nosso andar é confiante pois não faz checagens – os pés não buscam solidez. Não há medo de cair já que o chão inexiste. A queda só dói quando há chão. Queda sem chão tem outro nome: voar. Se dar é sair andando e de repente se descobrir voando.
“O que é vertigem? Medo de cair? Mas porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos aterrorizados.” –Milan Kundera, em A Insustentável Leveza do Ser
maravilhoso, pensamento de mestre da vida!!!!
ResponderExcluirEu tenho sido um coiote,chega!
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