ANTES DA CONSTRUÇÃO DO CARÁTER VEM A CONSTRUÇÃO DE SENTIDO
Sempre que vejo alguém falando em "caráter", meu senso-aranha dispara. É uma palavra bem bonita e forte, tipo um porrete. Boa de se usar em discussões morais, mas me parece bem desconhecida -- em profundidade -- para a maioria de nós.
O que seria ter caráter, em sua visão? Quando se tem caráter é possível perdê-lo? Há situações em que temos caráter e outras em que não? Isso nos torna possuidores de meio caráter ou de nenhum caráter?
É possível recuperar o caráter perdido?
Como a maioria dos conceitos mais importantes, precisamos diferenciar um pouco o sentido técnico do sentido da fala ordinária -- e onde eles se encontram.
Na fala cotidiana, “ter caráter” é não ser sacana, duas caras. Enfim, ser ético. Mais do que isso, o ser de forma relativamente consistente, ao longo do tempo e de uma forma relativamente previsível. É quase idêntico a “digno de confiança”.
No sentido técnico, há três formas de pensar a ética. As duas que não se focam tanto em caráter são as embasadas em pensar as consequências das ações, e as embasada em deveres e seguir regras.
Portanto, ter caráter é, em certo sentido, agir de forma íntegra. Parece outra palavra-chavão? Pois o que se quer dizer por “integral”?
Uma pessoa ser autêntica, não ser dúplice, não ter duas caras: isso pode querer dizer que ela não é mentirosa, falsa, enganosa. Mas também pode querer dizer que ela se porta de forma coerente com aquilo que ela mesma expõe.
O caráter é construído, é uma mistura de hábitos próprios com a percepção dos outros, e fruto de uma vida examinada (observada com atenção). Então a pessoa pode cometer grandes erros e não perder o caráter. Mas, por outro lado, uma vez que ele tenha sido manchado, recuperar é muito difícil.
Também não é fácil desenvolver o caráter, porque no início de nossa vida não temos tanto controle, e algumas vezes nenhum, sobre nossas circunstâncias e os exemplos e a educação que recebemos, elas são elementos cruciais. Se a pessoa se descobre no meio da vida sem ter vivido uma vida observada com atenção, até então, é muito difícil começar do nada, quebrar hábitos velhos e desenvolver virtude. Se bem que isso não é impossível, e todo mundo adora uma história de superação em meio a adversidade, mas provavelmente não é tão comum.
Por isso o caráter é uma forma tradicional de pensar a ética, e tradicional aqui com tudo de positivo e negativo que essa palavra acarreta. É mais lento que a nossa época permite, mas, por outro lado, permanece com seu valor exatamente por isso.
Então o caráter é a construção da ética através da vida examinada (observada com atenção) , ele pode ser obtido e perdido, mas é uma tarefa a tão longo prazo e envolve tantos hábitos arraigados que isso é incomum. Ele é integral, isto é, envolve todas as ações e todos os domínios da vida. Ainda assim, ele pode ser ferido ou incrementado.
Quando um filho está com febre, o levamos no médico porque temos uma obrigação moral, um dever? Ou o levamos no médico porque queremos que ele melhore?
Claro que essas duas coisas também, mas o levamos ao médico essencialmente porque somos essa pessoa que se importa com ele.
Se alguém é capaz de agir de acordo com a construção social, efetivamente, ele tem caráter. Porém, ele só vai conseguir agir assim com algum grau de sentido, integração -- perspectiva, horizonte. O que ocorre hoje é que não temos uma sociedade homogênea ou sequer, em grande parte, compreensível. Então pode ser que por algum tempo a pessoa não encontre dilemas morais, e não se "comporte bem".
Esse sentido é uma construção de sentido também, então ela pode ter um caráter em construção, enquanto ela se foca num horizonte do que ela quer para ela mesma e para os próximos.
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