A QUESTÃO DO CHÃO: SEMPRE QUE TOCAMOS O CHÃO, O CÉU SE ABRE PARA TODOS
Na real, precisaríamos discutir coisas bem mais básicas. Se você pegar as conversas em cima da mesa da sua cozinha, todos nós costumamos discutir coisas avançadas, como se já estivéssemos tocando o mesmo chão. Mas não estamos. Não temos clareza alguma sobre nossa humanidade comum, sobre qual vida vale a pena, sobre nossos sonhos, visões, prioridades, sobre quais os melhores jeitos de nos ajudarmos… Nada disso nasce quando operamos nos extremos do "cada um por si", como costumamos fazer.
Onde estamos quando brigamos e nos agredimos? Acima de nossas cabeças, suspensos, flutuando um em frente ao outro. Um dos sinais de que uma pessoa está perturbada é quando a pessoa só fala sobre si mesma e se torna incapaz de entender o mundo do outro. Ou seja, ela quase para de enxergar. Ela perde contato com a realidade.
Acredito que nossas crises são os melhores momentos para descobrir a importância de sair da suspensão e tocar o chão , de novo e de novo — ela detona em nós atitudes que transformam o modo de nos posicionarmos e nos relacionarmos.
Vejo dois grandes momentos quando calha das pessoas começarem a realmente tocar o chão. Primeiro, um momento de desistência, de ver que não vai dar certo seguir daquele jeito. E depois enfim o momento do chão.
Mas como assim... tocar o chão?
Tocar o chão é aterrisarmos depois de tanto esvoaçar por argumentos, histórias, lembranças, fatos. Em vez de olhar para fora, nos inserimos de volta como construtores das experiências que vivemos. Ser sincero, e admitir quando estamos confusos, desequilibrados, sem clareza alguma do nosso mundo interno.
Assim que aterrisamos, ainda é grande o impulso de voltar aos fatos e histórias, mas de novo e de novo começamos a puxar um outro tipo de conexão, cuja base é mais simples, descomplicada, quase infantil. É uma fala emocional, como se os olhos e a respiração pudessem dizer:
"Você quer ser feliz. Eu quero ser feliz. Eu não ganho nada quando você sofre, você não ganha nada quando eu sofro. Ninguém está contra ninguém. Estamos no mesmo barco. Meu sonho é tal… Qual é seu sonho? Faz bem seguirmos juntos? Se faz sentido, como podemos seguir? Eu também não sei bem como fazer..."
Sem partir daí eu acho impossível atravessar um conflito.
O processo crucial acontece quando descobrimos um olhar sereno, em nós e nos outros, onde vamos sempre que desejamos falar de coração.
Eis o chão! Alegria! Deveríamos fazer uma festa para marcar essa passagem, algo muito importante.
Não tomamos refúgio no outro, porém. Tomamos refúgio no chão do outro, que é o mesmo chão de qualquer pessoa, essa base pacífica e generosa, incapaz de produzir jogos negativos.
Toda vez que o outro nos maltratar, é hora de ajudá-lo, não de devolver a agressão. Por isso gosto tanto dessa frase quem vem do cristianismo, atribuída a Jesus: "Pai, perdoai-os porque eles não sabem o que fazem." Eu a traduziria como: "Relaxe, não culpe: eles não sabem onde estão, quem são e nem como conseguir o que desejam. Estão confusos. Precisam de ajuda."
Tocando o chão, de novo e de novo, aprendemos a criar e cultivar relações sem perder o contato com a realidade. Quanto mais nos familiarizamos com nosso próprio coração livre e com essa dimensão de sabedoria nos outros, mais conseguimos nos aproximar, dos obstáculos, das aflições, de todo tipo de negatividade e escuridão.
Tocando o chão, qualquer situação se torna trabalhável, aberta, não tão sólida e inescapável assim. Brota uma imensa paciência. E energia para seguir.
Não é que os problemas parem de surgir. Provavelmente eles vão continuar surgindo . A diferença é que agora temos uma espécie de pacto: não importa o que surgir, a pior coisa que podemos fazer é deixar que uma aflição tenha o poder de nos jogar uns contra os outros. Sem culpados, aparece mais nítida nossa responsabilidade coletiva.
O solo das aflições é o mesmo solo de todas as qualidades positivas, disponíveis a qualquer um. Não é só o problema que nos iguala. Sempre que tocamos o chão, o céu se abre para todos.